30.10.09

a justificação da retaliação


Tal como todo aquele que nunca viveu entre os seus iguais e para quem a ideia de «retaliação» é tão inacessível como, por exemplo, a noção de «igualdade de direitos», proíbo a mim próprio, nos casos em que me fazem alguma tolice, quer pequena quer muito grande, qualquer represália, qualquer medida de protecção — e também, logicamente, qualquer defesa, qualquer «justificação». A minha maneira de retaliar consiste em mandar tão depressa quanto possível um gesto inteligente no encalço do gesto estúpido: assim, talvez ainda seja possível apanhá-lo. Falando por metáforas, mando um frasco de compota, para me livrar de uma coisa azeda... Assim que me fazem alguma maldade, eu «retribuo», disso podem estar certos: em breve, encontro uma oportunidade para exprimir a minha gratidão ao «malfeitor» (e, às vezes, até para agradecer a malfeitoria) ou para lhe pedir alguma coisa — o que pode obrigar mais do que dar alguma coisa... Além disso, parece-me que mesmo a palavra mais grosseira, mesmo a carta mais impertinente ainda são mais benévolas, mais honestas, que o silêncio. Nos que se calam, há quase sempre falta de delicadeza e de cortesia sinceras; o silêncio é uma reserva, engolir tudo causa necessariamente mau carácter, e até estraga a digestão. Todos os que se calam são dispépticos. Já se vê que eu não gostaria que se menosprezasse a impertinência, que é de longe a forma mais humana de contradição e, no meio da edulcoração moderna, uma das nossas primeiras virtudes. Desde que se seja suficientemente rico para tanto, até é uma felicidade não ter razão. Um Deus, que viesse à Terra, não poderia senão fazer mal: tomar sobre si não o castigo, mas sim a culpa, eis o que seria propriamente divino.


Nietzsche, em Ecce Homo

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