10.6.10

postado pela segunda vez

Livro: Homo Videns
Autor: Giovanni Sartori
Capítulo: A Primazia da Imagem

3. A videocriança

"O ponto de viragem é dado, pois, pelo informar-se vendo. Esta viragem começa com a televisão. Pelo que, também eu começo pelo telever. Quaisquer que sejam, depois da televisão, os desenvolvimentos visuais do videover, é a televisão que modifica em primeiro lugar, e fundamentalmente, a própria natureza da comunicação, deslocando-a do contexto da palavra (seja ela impressa ou radiotransmitida) para o contexto da imagem. A diferença é radical. A palavra é um "símbolo" inteiramente resolvido naquilo que significa, naquilo que deixa compreender. E a palavra só deixa compreender se for compreendida, isto é, se conhecemos a língua a que pertence; de outro modo, é letra-morta, um signo ou um som qualquer. Pelo contrário, a imagem é pura e simples representação visual. A imagem, simplesmente, vê-se; e para ver basta a visão, basta não sermos cegos. A imagem não se vê em chinês, árabe ou inglês. Repito: simplesmente, vê-se.
Fica, então, claro que o caso da televisão não pode ser tratado por analogia, isto é, como se a televisão fosse uma prossecução e uma mera amplicação dos instrumentos de comunicação que a precederam. Com a televisão aventuramo-nos num novo radicalmente novo. A televisão não é um acréscimo; é acima de tudo uma substituição, que inverte a relação entre compreender e ver. Até hoje, o mundo e os acontecimentos do mundo eram-nos relatados (por escrito); hoje são-nos mostrados, e o relato (a sua explicação) é quase apenas em função das imagens que aparecem no vídeo.
Mas se for verdade, a consequência é que a televisão está a produzir uma mutação, uma metamorfose, que interessa a própria natureza do Homo sapiens. A televisão não é apenas um instrumento de comunicação; é, também, ao mesmo tempo, paideia (1), um instrumento "antropogenético", um media gerador de um novo anthropos, de um novo tipo de ser humano.
É esta a tese, ou, se quisermos, a hipótese, que cruza o livro todo e à qual, obviamente, voltarei por diversas vezes. Uma tese que se funda, como premissa, no puro e simples antefacto de que as nossas crianças vêem televisão, horas a fio, antes de aprenderem a ler e a escrever.
Curiosamente, esta exposição é criticada sobretudo porque (diz-se) habitua a criança à violência e a torna, quando adulta, mais violenta (2). Digo curiosamente, porque, aqui, um aspecto do problema substitui e esconde o problema. O argumento de que uma criança com menos de três anos não compreender aquilo que está a ver, mas, por isso mesmo, "absorve" a violência como um modelo excitante, e porventura vencedor, de vida adulta, é sem dúvida verdade. Mas porquê limitá-lo à violência? A verdade maior, e global, é que a criança cuja primeira escola (a escola divertida, que precede a escola aborrecida) é a televisão, é um animal simbólico que recebe o seu imprint, o seu cunho formativo, através das imagens de um mundo todo ele centrado no ver. Nesta paideia, a predisposição para a violência, é, dizia eu, apenas um aspecto do problema. O problema é que a criança é como uma esponja qe regista e absorve indiscriminadamente (visto não ter ainda capacidade de discriminação) tudo aquilo que vê. Ao mesmo tempo, e na vertente contrária, a criança formada pelo ver limita-se a ser um homem que não lê e, consequentemente, na maioria das vezes, "um desmiolado pelo vídeo", que se dedica aos videogames pela vida fora.
"No princípio era o verbo": assim reza o Evangelho de S. João. Hoje dever-se-ia dizer que "no princípio é a imagem". E com a imagem a ultrapassar a palavra, instala-se uma cultura juvenil muito bem descrita por Alberoni (1997):

Os rapazes andam no mundo adulto da escola, do Estado [...] da profissão como clandestinos. Na escola ouvem preguiçosamente as aulas [...] que esquecem rapidamente. Não lêem jornais [...] Trancam-se no seu quarto com os posters dos seus heróis, vêem os seus espectáculos, andam na rua mergulhados na sua própria música. Acordam apenas quando se encontram na discoteca à noite. Quando, finalmente, saboreiam a ebriedade de se amontoarem uns por cima dos outros, a beatitude de existirem como um único corpo colectivo a dançar.

Não seria capaz de representar melhor a videocriança, isto é, a criança criada pelo videover. Será que esta criança acaba por se tornal adulta, um dia? De uma forma ou de outra, necessariamente. Mas, seja como for, trata-se de um adulto que permanece surdo, por toda a vida, aos estímulos do ler e do saber transmitidos pela cultura escrita. Os estímulos aos quais continua a responder, quando crescida, são exclusivamente audiovisuais. Por isso, a videocriança não cresce para além de determinados limites. Aos trinta anos é um adulto empobrecido, educado pela mensagem "a cultura, que chatice" de Ambra Angiolini (a enfant prodige que animou durante uma época a grande aldeia de férias televisiva), portanto, um adulto marcado para toda a vida por atrofia cerebral.
O termo cultura possui dois significados. Na sua acepção antropossociológica significa que cada ser humano viva na esfera de uma sua própria cultura. Se o homem é, como é, um animal simbólico, disto deriva, eo ipso, que vive num contexto conectivo de valores, crenças, concepções e, numa palavra, de simbolizações que constituem a sua cultura. Nesta acepção genérica, também o primitivo ou o analfabeto possuem cultura. E é nesta acepção que hoje falamos, por exemplo, de uma cultura do lazer, de uma cultura da imagem e de uma cultura juvenil. Mas cultura é também sinónimo de "saber": uma pessoa culta é uma pessoa que sabe, de boas leituras, ou seja como for, bem informada. Nesta acepção restrita e apreciativa, a cultura é dos "cultos", não dos ignorantes. E é esta acepção que nos permite falar (sem contradições) de uma "cultura da incultura" e, consequentemente, de atrofia e pobreza cultural.
É exacto que "as sociedades têm sido sempre plasmadas pela natureaza dos media mediante os quais comunicam, mais do que pelo conteúdo da comunicação. O alfabeto, por exemplo, é uma tecnologia absorvida pela criança [...] por osmose, por assim dizer" (McLuhan e Fiore, 1967, p.1). Mas não é exacto que o "alfabeto e a imprensa têm promovido um processo de fragmentação, de especialismo e de separação, [enquanto] a tecnologia electrónica promove a unificação e envolvência" (ibid.). O contrário é que é verdade (3). Nem estas considerações podem demonstrar qualquer superioridade da cultura audiovisual sobre a cultura escrita.
A mensagem com a qual a nova cultura se recomenda e auto-elogia é que a cultura do livro é de poucos (elitista), enquanto a cultura audiovisual é de muitos. Mas o número de utilizadores - poucos ou muitos - não modifica a natureza e o valor de uma cultura. E se o custo de uma cultura de todos é a desclassificação para uma subcultura que é aliás - qualitativamente - "incultura" (ignorância cultural), então o saldo da operação só é negativo. Todos incultos será porventura melhor do que muitos cultos? Queremos uma cultura na qual ninguém sabe nada? Numa palavra, se o professor sabe mais que o aluno, teremos então de matar o professor; e quem não raciocina desta forma é elitista. Esta é a lógica de quem não tem lógica."

(1) Paideia é, do grego, a formação da criança.
(2) Segundo os cálculos de um professor americano, sem a televisão, nos Estados Unidos, verificar-se-iam menos 10000 assassínios e menos 700000 agressões por ano. Não me sinto capaz de subscrever este cálculo, mas esta influência certamente existe.
(3) Sobretudo quando se chega à decomposição digital (binária) das mensagens. Pois a digitalização é um instrumento formidável de decomposição-recomposição que fragmenta mesmo tudo. Para o "digerado" (o homem de uma cultura digital) deixa de existir uma realidade "organizada". Para ele, qualquer conjunto pode ser manipulado e recomposto ad libitum, a seu bel-prazer, de mil e uma maneiras.

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