30.5.13

Henry Miller, em "Sexus"


"(...) Estava tão entusiasmado com aquela ideia de que todos compartilhassem da sua alegria que continuou a falar durante vinte minutos ou mais, passando de um assunto para o outro, como um homem sentado ao piano a improvisar. Não tinha a mínima dúvida de que éramos todos amigos e de que o escutaríamos em paz até acabar de dizer o que tinha a dizer. Nada do que dizia parecia ridículo, por muito sentimentais que as suas palavras fossem. Era absolutamente sincero, absolutamente autêntico e estava absolutamente convencido de que ser feliz é a maior fortuna da Terra. Não fora a coragem que o levara a levantar-se e dirigir-se-nos, pois era evidente que a ideia de se levantar e de proferir um discurso longo e extemporâneo o surpreendia tanto como a nós. Naquele momento - e sem o saber, claro -, estava em vias de se tornar um evangelista, esse curioso fenómeno da vida americana que nunca foi convenientemente explicado. Como deve ter sido grande, e prolongada, a sensação de isolamento para que os homens inspirados por uma visão, por uma voz desconhecida, por um irresistível impulso interior - e devem ter havido milhares e milhares de homens assim na América -, se levantem de súbito, como se acordassem de um transe profundo, e criem para si próprios uma nova identidade, uma nova imagem do mundo, um novo Deus, um novo paraíso! Nós, americanos, estamos habituados a ver-nos como um grande corpo democrático, ligado por laços comuns de sangue e língua, indissoluvelmente unidos por todos os meios de comunicação que o engenho do homem consegue inventar; usamos as mesmas roupas, comemos a mesma dieta, lemos os mesmos jornais, semelhantes em tudo menos em nome, peso e número; somos o povo mais colectivizado do mundo, exceptuando certos povos primitivos que consideramos atrasados no seu desenvolvimento. E, contudo... e, contudo, apesar de todos os indícios exteriores de sermos unidos, inter-relacionados, sociáveis, bem humorados, prestáveis, compreensivos, quase fraternais, apesar de tudo isso somos um povo solitário, uma manada mórbida e enlouquecida que se debate num frenesi zeloso, tentando esquecer que não somos o que pensamos ser, que não somos verdadeiramente unidos, nem verdadeiramente compreensivos, nem verdadeiramente nada - somos apenas algarismos manobrados por mão invisível num cálculo que não nos diz respeito. De súbito, de vez em quando alguém acorda, alguém se solta, por assim dizer, da cola sem significado que nos prende - a confusão a que chamamos vida quotidiana e que não é vida e, sim, uma suspensão, como que em transe, acima da grande corrente da vida -, e essa pessoa que, em virtude de já não corresponder ao padrão geral, nos parece louca varrida, encontra-se investida de estranhos e quase aterradores poderes, descobre que pode arrancar incontáveis milhares ao redil, libertá-los das cadeias que os prendem, colocá-los de cabeça para baixo, enchê-los de alegria ou loucura, obrigá-los a abandonar parentes e amigos, a renunciar à sua vocação, a mudar o seu carácter, a sua fisionomia, a sua própria alma! E de que natureza é essa sedução subjugadora, essa loucura, essa «perturbação temporária», como gostamos de lhe chamar? Que mais poderá ser senão a esperança de encontrar ventura e paz? (...) O segredo que detém o movimento exterior, que tranquiliza o espírito, que equilibra, que dá serenidade e aprumo e ilumina o rosto com uma chama firme e calma que nunca morre, surge num abrir e fechar de olhos. É verdade que, nos seus esforços para nos transmitirem o segredo, eles se tornam aborrecidos para nós. Evitamo-los porque nos parece que nos olham condescentemente; não toleramos a ideia de não sermos iguais seja a quem for, por muito superiores que possamos parecer. Mas não somos iguais; somos particularmente inferiores, imensamente inferiores, particularmente inferiores àqueles que são calmos e controlados, simples no seu proceder e inabaláveis nas suas crenças. Sentimos ressentimento pelo que é firme e sólido, inacessível às nossas lisonjas, à nossa lógica, ao nosso bolo colectivizado de princípios, às nossas antiquadas formas de submissão. Um pouco mais de felicidade, pensei, ao ouvi-lo, e aquele homem transformar-se-ia naquilo a que se chama um indivíduo perigoso. Perigoso porque ser permanentemente feliz seria incendiar o mundo. Fazer o mundo rir é uma coisa; fazê-lo feliz, é outra muito diferente. Nunca ninguém o conseguiu. (...) Sei que a própria palavra «felicidade» adquiriu um timbre odioso, particularmente na América; soa a coisa néscia e sem sentido, soa a vazio, é o ideal de fracos e enfermos. Trata-se de uma palavra herdada dos Anglo-Saxões e deformada por nós, transformada num vocábulo inteiramente absurdo. Envergonhamo-nos de a empregar com seriedade, embora não exista nenhuma razão válida para isso. A felicidade é tão legítima como o desgosto, e toda a gente, excepto as almas emancipadas que, na sua grande sabedoria, descobriram algo melhor, ou maior, toda a gente deseja ser feliz e, se pudesse (se ao menos soubesse como!), sacrificaria tudo para alcançar. (...)"

Sem comentários:

Enviar um comentário