4.8.13

Violência em Flor

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"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher"
Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo

A mulher, ser complexo e de difícil compreensão, e a dualidade constante da sua condição (fragilidade e instabilidade vs. superação e resistência) são temas que ainda hoje, após muito tempo e anos de estudo, merecem especial atenção e são motivo de admiração e espanto para muitos, senão para todos nós.
O auto-retrato "Nan one month after being battered" (1984), de Nan Goldin, e a série de auto-retratos denominada "A Picture of Health?" (1982-86), de Jo Spence, são exemplos que expressam visualmente a fragilidade e a consequente superação da mulher em situações distintas, mas de igual forma avassaladoras.
Nan Goldin, fotógrafa americana nascida em 1953, dedicou grande parte do seu trabalho à reprodução intensa, espontânea e incessante de imagens de momentos da sua vida, onde apareciam os seus amigos, os seus companheiros amorosos e pessoas que ia conhecendo. A relação que se estabelece com o trabalho de Nan Goldin nunca poderá ser despreocupada ou desprovida de emoções, uma vez que nele é desvendado de forma crua o isolamento do indivíduo na sociedade contemporânea. Goldin apresenta-nos aos submundos da prostituição, da homossexualidade, da violência, das drogas e da degradação do ser humano enquanto ser social e fá-lo de forma tão astuta e bem conseguida, que não nos sentimos afastados daquela realidade subvertida; pelo contrário, aproximamo-nos dela, percebemo-la, sem nunca a julgarmos.
No entanto, mesmo conhecendo de antemão o carácter imponente e perturbador das suas fotografias, com "Nan one month after being battered" a comoção é imediata. Neste auto-retrato, pode ver-se Nan Goldin a olhar directamente para a câmara com hematomas e contusões nos olhos que contrastam drasticamente com o seu cabelo arranjado, com os brincos e com o colar de pérolas que usa. O sangue no branco do olho esquerdo inchado espelha a sombra do seu batom vermelho. Como fundo, vê-se uma peça de mobiliário de madeira escura, uma parede branca e uma cortina da mesma cor bordada, que aparece azulada. É aqui que assistimos ao resultado do final trágico da relação de Goldin com seu companheiro na época, Brian, que quase a espancou até à morte num quarto de hotel em Berlim.
Figura-chave da fotografia inglesa em meados dos anos 70, o nome de Jo Spence foi e é, ainda, reconhecido como fundamental em debates que relacionam a fotografia, a política e a condição da mulher na sociedade. Iniciou-se como fotógrafa de estúdio e, motivada pelas suas preocupações políticas, começou a fotografar para representar temas intimamente ligados ao feminismo e ao socialismo.
Em toda a sua obra confrontou as pessoas com vários assuntos que a sociedade tentava esconder e "A Picture of Health?" não foi excepção: em 1982, foi-lhe diagnosticado cancro da mama e a fotógrafa decidiu registar todo o processo físico, emocional e psicológico do tratamento da mesma.
"A Picture of Health?" é um trabalho que mostra a resposta que Jo Spence dá à doença e ao respectivo tratamento, onde esta canaliza a sua pesquisa e os seus sentimentos sobre o cancro da mama e sobre a medicina ocidental ortodoxa, numa exposição importante que deu origem a uma série de artigos e de palestras educativas sem precedentes.
Após uma mastectomia, a fotógrafa optou por tratar a sua doença através da medicina tradicional chinesa, em detrimento de ter de fazer rádio e quimioterapia. Aliada a este recurso, usou, também, a fototerapia (usou, literalmente, a fotografia para curar), com o objectivo de enfrentar a crise emocional por que estava a passar.
O seu trabalho levantou várias questões pertinentes com base no que experienciou durante o tratamento e Spence acabou por dar a conhecer ao mundo o sentimento de impotência, de frustração e de indignação inerente à condição de doente de um cancro.
Como defenderia Simone de Beauvoir no seu livro O Segundo Sexo, a imagem que se construiu da mulher como símbolo de beleza, de pureza, de procriação e de amor maternal é falsa e limitadora, porque a aprisiona numa posição de passividade, para evitar qualquer tentativa de resistência e possibilidade de emancipação. Com os trabalhos de Nan Goldin e de Jo Spence assistimos à confirmação da teoria de Beauvoir. Estes são dois grandes exemplos de coragem e de ousadia que vêm confirmar a complexidade inerente à mulher, pois ela, mesmo frágil, quer ver-se, quer usar a dor para saber lidar com ela e quer, principalmente, mostrá-la, porque, contrariamente a muitos auto-retratos de outros autores, estes dois trabalhos são exemplos claros de que o propósito inicial não foi meramente narcisista e que houve uma necessidade crucial de que a fotografia fizesse aquilo que um espelho não conseguiria fazer: memorizar, chocar, influenciar, tudo muito direccionado para os outros, sim, mas, especialmente, direccionado para elas próprias, com o objectivo de se encontrarem com o seu reflexo e de se superarem, sem lamentações, nem vitimizações.
Violentos, fortes, sensíveis, sem pudor e sem medo - assim devem ser caracterizados estes auto-retratos, nunca esquecendo que tudo isto não é mais do que a autenticidade, a duplicidade e a complexidade da mulher.

por Bruna Oliveira Lopes

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